2020-07-09 18:53:00
<p><em><img title="Água não é mercadoria" src="http://www.apcefrs.org.br/web/upload/misc/image/76c292826a5bb0771ae1dcef3880020f.jpg" alt="Água não é mercadoria" width="214" height="298" /></em></p>
<h3>Em nome de interesses privados, Novo Marco Legal negligencia acesso à água e ao saneamento como direito humano fundamental</h3>
<p><em>Por Anne Ledur, para a APCEF/RS</em></p>
<p>No último dia 24 de junho, o Senado Federal aprovou, por 65 votos favoráveis a 13 contrários, o Novo Marco Legal do Saneamento (Projeto de Lei 4162/2019) – de relatoria de Tasso Jereissati (PSDB-CE) –, que trata da privatização do setor de saneamento no Brasil. O PL havia sido aprovado na Câmara de Deputados, em dezembro do ano passado, e, segundo o líder do Governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), será sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) nos próximos dias, com alguns vetos negociados para que a matéria não volte à Câmara para ser apreciada novamente.<br /><br />Segundo o texto, a partir de março de 2022, todos os contratos de prestação de serviços de saneamento - incluindo distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto e resíduos - existentes entre os municípios brasileiros e as estatais de saneamento poderão ser revistos. Com a nova lei, passam a ser obrigatórios editais de licitação entre empresas públicas e privadas, sendo que as empresas estatais só poderão renovar os contratos e participar do processo licitatório se conseguirem comprovar viabilidade financeira e técnica para gerir os serviços por 30 anos.<br /><br />Conforme Dalila Calisto e José Josivaldo Alves, coordenadores do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), em artigo publicado no jornal Brasil de Fato, essas mudanças devem acarretar na entrega ao capital financeiro da maioria dos serviços de saneamento do País em menos de dois anos, visto que é pouco provável que as empresas públicas tenham fôlego para concorrer com as privadas, considerando as dificuldades já enfrentadas pelas estatais hoje.<br /><br />Para o secretário-executivo do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas Brasil) e assessor de saneamento da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU), Edson Aparecido da Silva, de fato, o que está por trás da aprovação do PL 4162 é a possibilidade de ampliar, de forma significativa, a interferência do setor privado nos serviços de saneamento básico. "Essa lei é fruto de uma grande pressão de grupos privados nacionais e internacionais, principalmente as corporações que são controladas por fundos de investimento. Isso acarretará numa financeirização dos serviços de saneamento", declarou.<br /><br />Dito e feito! Dois dias após a aprovação do PL, uma matéria publicada no jornal Folha de São Paulo confirmou: "Nova lei de saneamento anima fundos globais de investimento". Segundo a reportagem, investidores americanos, canadenses, espanhóis, chineses e do Oriente Médio já haveriam contratado assessorias técnicas para avaliar as oportunidades do segmento no Brasil.<br /><br /><strong>Aprofundando desigualdades</strong><br /><br />Conforme sustenta Edson Aparecido da Silva, o Novo Marco Legal do Saneamento aprofundará ainda mais a segregação social no acesso à água e ao tratamento de esgoto. "A probabilidade é de que o setor privado se interesse por cidades mais populosas, onde o serviço já está, em grande medida, executado, com maiores coberturas de abastecimento de água e de coleta e tratamento de esgoto, deixando populações periféricas, de áreas rurais e de pequenos municípios desprotegidas. O que nós vamos assistir, em pouco tempo, é um aumento na exclusão dessas pessoas", completou.<br /><br />Outra questão inevitável, conforme aponta o especialista, seria um aumento significativo na tarifa: "Considerando que a lógica que norteia a ação das empresas privadas é a lógica do lucro, além da cobrança necessária para pagar os custos da prestação do serviço, ainda haverá um 'plus' na tarifa, a fim de garantir o lucro dos acionistas".<br /><br />À parte a isso, entrará na conta do(a) consumidor(a) a responsabilidade de pagar por qualquer obra necessária para manter ou aumentar o acesso. Hoje, 35 milhões de brasileiros(as) ainda não têm água tratada e quase metade não tem esgoto. Ou seja, quem mais padece com a falta de saneamento terá ainda menos chance de, algum dia, acessá-lo. Em vez de o setor privado investir, a população mais pobre e vulnerável terá de fazer esse investimento para garantir o lucro das empresas e de seus(suas) acionistas, o que é extremamente perverso. E, consequentemente, a população mais vulnerável irá buscar água de fontes duvidosas, impactando diretamente – e especialmente – sobre a sua saúde.<br /><br /><strong>Na contramão do mundo</strong><br /><br />Em entrevista ao portal BRPolítico, o pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), relator especial do Direito Humano à Água e ao Esgotamento Sanitário das Nações Unidas (ONU) e conselheiro do Ondas Brasil, Léo Heller, afirmou que os pressupostos neoliberais usados para justificar a aprovação do PL 4162 – como o de que a iniciativa privada seria mais eficiente do que o setor público e de que a burocracia do estado impediria a adequada prestação dos serviços – já foram superados teórica e empiricamente.<br /><br />A tendência mundial, inclusive, vai na contramão disso. "Mesmo em países com tradições liberais, como os Estados Unidos, o Canadá e a Alemanha, esses serviços são predominantemente ou integralmente públicos. Em alguns países, aliás, tem havido uma tendência na direção da remunicipalização de serviços outrora privados", atestou Heller.<br /><br />Segundo um estudo do Instituto Transnacional da Holanda (TNI), 1408 municípios de 58 países dos cinco continentes reestatizaram seus serviços entre os anos de 2000 e 2019. O estudo detalha experiências de diversas cidades que recorreram a privatizações de seus sistemas de água e saneamento nas últimas décadas, mas decidiram voltar atrás. A lista inclui cidades como Atlanta, Berlim, Paris, Budapeste, Buenos Aires e La Paz.<br /><br /><strong>Água é direito humano fundamental</strong><br /><br />Tanto Silva como Heller avaliam que a Lei 11445, de 2007 – que versa sobre o saneamento básico e que foi alterada pelo Novo Marco Regulatório –, ainda é válida e bastante avançada. A primeira premissa contida nela e ignorada pelo PL 4162 é de que o acesso à água e ao esgotamento sanitário é um direito humano fundamental que não pode ser negligenciado em nome de interesses privados. Nesse sentido, ambos os especialistas concordam que a nova lei não contribuirá para o avanço do saneamento básico no Brasil.<br /><br />"A universalização do acesso a esses serviços públicos só será alcançada com a retomada dos investimentos com recursos, principalmente de instituições públicas, do Orçamento Geral da União (OGU), com a implementação do Plano Nacional de Saneamento (Plansab), com a retomada dos instrumentos de participação e controle social (como o Conselho das Cidades), com um programa de recuperação e revitalização dos operadores públicos e com a criação de um Fundo Nacional de Universalização do Saneamento", defendeu Silva, em artigo recente.<br /><br />"Penso que [o Novo Marco Legal do Saneamento] não altera positivamente as chances de o País alcançar as metas dos objetivos de desenvolvimento sustentável ou do Plansab. Para isso, seriam necessários outros movimentos, como o fortalecimento da política pública, a estabilidade do financiamento público e o aperfeiçoamento da capacidade de gestão, sobretudo no nível municipal", corroborou Heller ao BRPolítico.<br /><br /><strong>PL 495, mais uma tentativa de assalto à soberania nacional</strong><br /><br />Além do Novo Marco Legal do Saneamento, o grande capital já se prepara para passar mais um calote na soberania nacional. Por meio do PL 495/2017, em tramitação no Senado, a proposta é de que se criem "mercados de água", com a privatização, entre outros, da Transposição do Rio São Francisco, de outras bacias hidrográficas e da Eletrobras (Centrais Elétricas do Brasil S/A). O referido Projeto de Lei – de autoria de ninguém menos que o relator do PL 4162, Tasso Jereissati – alega que é preciso que haja uma "atribuição eficiente dos recursos hídricos".<br /><br />"Isso significa permitir que grandes grupos econômicos que atuam tanto no agronegócio, no setor elétrico, na mineração e no saneamento, como Ambev, Vale, Suez, Coca-Cola, BTG Pactual, Itaú, AEGEA, BRK Ambiental, controlem e se apropriem de forma privada dos rios e das águas subterrâneas do Brasil, por meio do que eles chamam de 'negociação sobre o direito de usos das reservas disponíveis de água'", alertam os dirigentes do MAB, Dalila Calisto e José Josivaldo Alves, em seu artigo.<br /><br />Na prática, se aprovada, essa lei estabelecerá a água como propriedade privada. "Se isso acontecer, ao invés de garantir a universalização do acesso à água, o que ocorrerá é a proibição do acesso e a total exclusão do direito à água para o povo. As pessoas ficarão proibidas de acessar gratuitamente qualquer fonte de água nos rios, lagos e açudes", completam Calisto e Alves.<br /><br />Um exemplo disso é a emblemática situação vivida em Cochabamba (Bolívia), no ano de 2000, quando a estadunidense Bechtel foi expulsa pelo povo, pois, além de todas as proibições de coleta de água, a empresa ainda incluiu a proibição de coletar água da chuva. Para saber mais, assista ao documentário "Bolivia, la guerra del agua", de Carlos Pronzato, em https://www.youtube.com/watch?v=-7ZnaY0ateo.<br /><br />Outra questão sensível, inevitavelmente, serão as tarifas, que novamente tenderão a aumentar, pois o preço a ser cobrado pelo metro cúbico (m³) de água passará a ser medido conforme o preço da energia elétrica aplicada pelo mercado.<br /><br /><strong>APCEF/RS em Defesa do Bem Comum</strong><br /><br />Integrante de importantes redes, como o Fórum Alternativo Mundial da Água, a APCEF/RS tem a defesa do Bem Comum como um dos seus fundamentos de atuação. Água pública e saneamento básico são bens comuns fundamentais. Nesse sentido, diante dessa nefasta tentativa do grande capital de transformar esse direito humano em mercadoria, a Associação manifesta-se veementemente contrária à nova legislação. "Água é um Bem Comum fundamental à vida. Por isso, não pode estar à mercê dos interesses do capitalismo. Dessa forma, endossamos toda e qualquer luta que possa reverter ou minimizar os efeitos dessa infeliz legislação recentemente aprovada", declarou o presidente da Associação, Marcello Carrión.<br /><br /><strong>Apoie o Ondas Brasil!</strong><br /><br />O Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas Brasil) é um canal de produção de conhecimento e de atuação política direcionado ao direito à água e ao saneamento. Nesse sentido, a entidade busca promover uma ação conjunta com instituições acadêmicas e movimentos sindicais e sociais de todo o País, a fim de enfrentar, de modo mais efetivo, o processo de mercantilização da água e de privatização do saneamento.<br /><br />O Ondas é constituído por associados(as) – acadêmicos(as), pesquisadores(as), estudantes, trabalhadores(as) do setor, integrantes de movimentos sociais e cidadãos em geral – que contribuem com uma anuidade que viabiliza novos estudos e divulgação de material para subsidiar a luta. A diretora de Aposentadas(os), Previdência e Saúde da APCEF/RS, Célia Zingler, faz parte do corpo associativo do Ondas. Para apoiar o Observatório, acesse https://ondasbrasil.org/ e associe-se! Saiba mais também na página da organização no Facebook.</p>
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