2018-09-18 20:24:00
<h4><span style="font-size: 1em;"><img title="Valdete Souto Severo" src="http://www.apcefrs.org.br/web/upload/misc/image/09d06f77a3460089f1e2be8433766f14.jpg" alt="Valdete Souto Severo" width="660" height="440" /></span></h4>
<h4><span style="font-size: 1em;">ENTREVISTA: Valdete Souto Severo (Juíza do Trabalho e doutora em Direito do Trabalho)</span></h4>
<h4>Valdete Severo sustenta que terceirização irrestrita prejudica não apenas os(as) trabalhadores(as), que terão piores condições de trabalho, mas também os(as) consumidores(as) e as próprias empresas, devido à dificuldade de controlar a qualidade dos serviços</h4>
<p>No último dia 30 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou, por 7 votos a 4, que todas as modalidades de trabalho no Brasil podem ser terceirizadas, não apenas as atividades-meio. Para falar sobre o tema, o João de Barro entrevistou a juíza do trabalho, Valdete Souto Severo.</p>
<p>Valdete é doutora em Direito do Trabalho pela USP; mestre em Direitos Fundamentais pela PUCRS; pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital da USP e da Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social; professora, coordenadora e diretora da Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS (Femargs); especialista em Processo Civil pela Unisinos; especialista em Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Direito Previdenciário pela Unisc; máster em Direito do Trabalho, Direito Sindical e Previdência Social, pela Universidade Europeia de Roma (UER); especialista em Direito do Trabalho e Previdência Social pela Universidade da República do Uruguai; juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região; e membro da Associação Juízes pela Democracia (AJD).</p>
<p>Confira a entrevista.</p>
<p><strong>João de Barro - De que forma essa decisão do STF sobre a terceirização irrestrita vai impactar nos direitos dos(as) trabalhadores(as)?</strong></p>
<p>Valdete Severo - Em realidade, uma decisão muito parecida já havia sido proferida pelo STF, em 2015, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1923, afirmando a possibilidade de a atuação do Estado na saúde, na educação, na cultura, no desporto e lazer, na ciência e tecnologia e no meio ambiente realizar-se mediante uma gestão compartilhada com o setor privado, por intermédio da formalização de “instrumentos de colaboração público/privada”. Isso significa permitir a terceirização da atividade-fim no setor público, mediante a “terceirização” da própria administração, indo bem além (e sem limites) das hipóteses previstas no art. 175 da Constituição (concessão e permissão de serviços públicos). De acordo com aquela decisão, é lícita a transferência, para uma Organização Social (OS), por exemplo, de atividade escolar ou de saúde.</p>
<p>Do mesmo modo, na ADC 16, o STF declarou constitucional o Art. 71 da Lei de Licitações, para o efeito de compreender que o administrador público não responde pelo simples fato de terceirizar. Ao contrário, só responde como tomador dos serviços se houver prova de que agiu com culpa. A decisão, que provocou a imediata alteração de itens da súmula 331 do TST, atinge um número expressivo de trabalhadores, já que a administração pública, infelizmente, é quem mais terceiriza no país.</p>
<p>Além disso, na prática, já não havia clara distinção entre atividade-meio e atividade-fim, conceitos, aliás, que não tinham previsão jurídica e até hoje não têm definição em texto algum de lei.</p>
<p>A decisão proferida na ADPF 324 e no RE 958252 chancela, portanto, um entendimento que já havia sido expresso pelo STF e que, de algum modo, estava sendo albergado pela Justiça do Trabalho, que apenas nos últimos anos começou a reconhecer a ilicitude de algumas práticas de terceirização, em larga medida por conta do problema social que tal prática gera.</p>
<p>A nova decisão do STF vem no contexto de várias outras decisões com caráter claramente contrário a uma noção social de Estado, a partir de argumentos econômicos, como ocorreu no voto relator já proferido na ADI 5766, que trata das alterações da CLT sobre gratuidade da Justiça, na decisão acerca do imposto sindical, naquela que reduz o prazo de prescrição para a cobrança do FGTS, ou no julgamento do RE 693.456, em que o STF chegou ao resultado de que o direito de greve não existe, mesma compreensão exarada na Reclamação 24.597, julgada em outubro de 2016, em que foi afirmado: “Não há dúvida quanto a serem, os servidores públicos, titulares do direito de greve. Porém, tal e qual é lícito matar a outrem em vista do bem comum, não será ilícita a recusa do direito de greve a tais e quais servidores públicos em benefício do bem comum”.</p>
<p>Apenas para citar mais uma decisão, em 13/6/2018, o STF julgou improcedente a ADI 1306 e a ADI 1335, afirmando a constitucionalidade do Decreto 4264/95 da Bahia, que inviabiliza o direito de greve. No RE 590415, o STF proferiu decisão que chancela cláusula normativa que prevê quitação geral do contrato por empregado que adere a plano de demissão voluntária. Ou seja, ao aderir ao plano e receber uma indenização pela perda do emprego, o empregado ganha, como “prêmio”, a impossibilidade de exercer seu direito constitucional de ação, em razão de uma cláusula manifestamente abusiva, pela qual haveria outorgado à empresa quitação genérica. A decisão é tão grave que há, inclusive, referência à possibilidade de renúncia a direitos trabalhistas em âmbito coletivo. E acabou resultando introdução, no texto da CLT, de regra no mesmo sentido, pela Lei 13.467.</p>
<p>Na Ação Cautelar 3669, que pede “efeito suspensivo aos embargos de declaração” opostos no RE 589998, o STF foi determinado o sobrestamento, pelo TST, de todos os recursos extraordinários que tratem de dispensas imotivadas em empresas públicas. No mencionado Recurso Extraordinário, foi reconhecido o dever de motivação da despedida pela ECT e por empresas públicas e sociedades de economia mista.</p>
<p>A realidade é que já há algum tempo o STF vem impondo vários retrocessos aos direitos das trabalhadoras e dos trabalhadores, realizando uma “reforma" que consegue ser ainda pior do que aquela alcançada pelo Congresso em 2017, através das Leis 13.429 e 13.467.</p>
<p><strong>JB - O que motivou o STF a se pronunciar neste momento?</strong></p>
<p>VS - Não há como afirmar quais são os motivos. Fato é que, nos últimos anos, o STF revela um interesse seletivo pelo julgamento de questões trabalhistas e tem, reiteradamente, se pronunciado de modo contrário à proteção que justifica a existência de normas de regulação entre capital e trabalho.</p>
<p>Afirmo ser seletivo esse interesse porque a ADI 1625, que trata da inconstitucionalidade da denúncia da Convenção 158 da OIT - acerca do dever de motivação da despedida e de regras para a dispensa coletiva, proposta em 1997 - até hoje não teve seu julgamento concluído.</p>
<p>As decisões proferidas nos últimos anos, pelo STF, têm revelado uma ânsia flexibilizadora e o desconhecimento do princípio que justifica a existência do Direito do Trabalho: a noção de proteção a quem trabalha. Uma noção construída historicamente com o suor e o sangue dos trabalhadores, mas que serve também ao capital.</p>
<p>Nos dois últimos séculos, multiplicam-se exemplos de crises, em que o Estado foi chamado a regular a relação de trabalho, criando regras de proteção ao trabalhador, para viabilizar a continuidade do sistema. Basta ver o momento de criação da OIT, em 1919, ao final da primeira guerra mundial, ou o New Deal nos EUA, após quebra da bolsa de NY, em 1929.</p>
<p>Essa tradição que está sendo quebrada pelo Poder Judiciário terá certamente um custo histórico tremendo. E nós todos iremos pagar essa conta.</p>
<p><strong>JB - Ainda acerca da decisão do Supremo, você afirmou que o "Direito do Trabalho irá resistir". A que você se refere?</strong></p>
<p>VS - Refiro-me à possibilidade de resgatar as razões históricas pelas quais o Direito do Trabalho foi construído, através, sobretudo, de teses jurídicas, a serem construídas ou resgatadas por quem atua nesta área. O Direito é linguagem, e a linguagem do Direito no Brasil, apesar dessas tristes decisões, segue sendo a da Constituição de 1988, segundo a qual até mesmo a ordem econômica deve ser orientada pelos “ditames da justiça social”(art. 170).</p>
<p>Então, eu não tenho dúvida de que há espaço para recuperarmos os direitos que estão sendo violados por alterações legislativas e decisões da mais alta corte do país. Basta que haja o que Konrad Hesse chamou de “vontade de Constituição”. Não de cumprir o texto da Constituição, mas sim de cumprir o projeto que ali está inscrito, e que é muito claro.</p>
<p>O Direito do Trabalho é fruto da luta de classes, algo “duramente arrancado do capital”, como disse Marx, e, por isso mesmo, não há pensar uma sociedade de trocas em que não haja regulação estatal da troca de trabalho por dinheiro, quando essa troca é condição para a sobrevivência física da maioria absoluta dos seres humanos que vivem nessa sociedade. O Direito do Trabalho é o limite da exploração possível. A falta de compreensão dessa função reguladora e sobretudo de contenção da luta de classes pode ter um preço alto.</p>
<p>Por isso, acredito que haverá (e sei que já está havendo) reação daqueles que acreditam na função que essas normas exercem, inclusive para habilitarem as pessoas a pensarem uma realidade diferente dessa que temos hoje. Há, por exemplo, o Movimento dos Advogados Trabalhistas Independentes (Mati), que tem se organizado de modo solidário, dividindo textos, promovendo estudos e resgatando a função combativa e social de quem advoga nessa área.</p>
<p>Temos um grupo, Resistência, que publicou uma coletânea de artigos no livro “Resistência: aportes teóricos contra o retrocesso trabalhista”, projeto encampado pela Editora Expressão Popular, que nos auxiliou nesse verdadeiro ato de militância, aceitando produzir e veicular o livro por preço praticamente de custo. As autoras e os autores abriram mão de qualquer valor relativo à obra e os artigos ali publicados são de alta qualidade. Recentemente, saiu do forno o livro “Resistência II: defesa e crítica da Justiça do Trabalho”, também pela Expressão Popular. Ou seja, há condições para que o discurso do Direito do Trabalho volte a ser um discurso de proteção social.</p>
<p>A realidade é que deixamos que a terceirização entrasse na realidade das relações de trabalho e não reagimos sequer à Súmula 331, do TST, legislação feita sem filtro democrático, que abriu as portas à terceirização e é, em larga medida, uma das causas pelas quais hoje vivemos esse pesadelo.</p>
<p>Passou da hora de essa reação começar.</p>
<p><strong>JB - Quais poderão ser os efeitos da terceirização irrestrita em empresas estatais como a Caixa?</strong></p>
<p>VS - Concretamente, uma tal compreensão pode levar à eliminação de postos de trabalho e, com isso, do direito ao ingresso por concurso público, através do repasse de todas as atividades para terceiros. As consequências não atingirão apenas os trabalhadores concursados, mas também os consumidores, pois o controle da qualidade do serviço, especialmente em uma atividade como a bancária, torna-se praticamente impossível quando não se sabe ao certo quem está prestando o serviço. Daí a razão pela qual é fundamental se insurgir contra uma tal prática, através da demonstração dos riscos de uma tal prática inclusive para a própria instituição.</p>
<p>Assim como os consumidores não terão a mesma qualidade na prestação dos serviços, o controle - pela instituição - dos serviços realizados, torna-se bem mais complicado. A responsabilidade pelos atos das prestadoras, por sua vez, pode implicar prejuízo concreto à CEF.</p>
<p>JB - A ampliação da terceirização é apontada como fator que deve dificultar o combate ao trabalho escravo. De que forma isso pode acontecer?</p>
<p>VS - A terceirização é um artifício que vem sendo utilizado para reduzir custos e majorar a capacidade de exploração do capital pelo trabalho, cujos efeitos reais revelam aumento expressivo do número de acidentes de trabalho, conforme mostram vários estudos, entre os quais: http://www.sinttel.org.br/downloads/dossie_terceirizacao_cut.pdf, acesso em 16/6/2014.<br />Estimula a fraude em licitações, evasão fiscal e corrupção (http://www.sinttel.org.br/downloads/dossie_terceirizacao_cut.pdf, acesso em 16/6/2014.); promove significativo aumento do número de dependentes do INSS, drástica redução na arrecadação e circulação de riquezas e, por consequência, a redução da arrecadação fiscal (http://www.viomundo.com.br/denuncias/ministros-do-tst-sao-unanimes-pl-4-330-provocara-gravissima-lesao-social-de-direitos-trabalhistas.html, acesso em 07/5/2015).</p>
<p>A questão do trabalho escravo vem demonstrada em vários estudos do Ministério Público do Trabalho. A maioria absoluta dos casos flagrados são em empresas prestadoras de serviços. No <a href="http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C816A350AC88201350B7404E56553/combate%20trabalho%20escravo%20WEB.PDF" target="_blank">Manual de Combate ao trabalho em situação análoga a de escravo</a>, o Ministério do Trabalho observa que provavelmente com o intuito “de elidir a responsabilidade pelo vínculo empregatício, a adoção da terceirização ganhou espaço”, havendo necessidade de que a fiscalização volte suas atenções para o “desvendamento da cadeia produtiva envolvida”, pois essa prática tem incentivado a exploração de trabalho escravo.</p>
<p>A terceirização estimula o racismo e a diferença de gênero. Os serviços de limpeza e manutenção, por exemplo, mantém a maioria absoluta de mulheres negras como empregadas. Dados revelados por uma pesquisa do Sindicato das Empresas de Asseio e Conservação do Estado do Rio de Janeiro apontam que 92% dos trabalhadores nos serviços de limpeza terceirizados são mulheres, enquanto 62% são negros. Nos serviços de telemarketing, a escolha de mulheres e negros para o trabalho é, por vezes, justificada pela invisibilidade que esse trabalho promove. Longe dos olhos do consumidor, o atendente não precisa preencher o requisito perverso e racista da “boa aparência”.</p>
<p>Ainda, aniquila a capacidade de organização sindical, porque divide a categoria, criando “classes” dentro da classe. Os trabalhadores terceirizados não se identificam com os colegas que são contratados diretamente.</p>
<p>A pulverização das atividades, com a criação de sindicatos de terceirizados, cria disputa interna, que compromete a resistência coletiva, já enormemente dificultada pela ausência de qualquer garantia contra a despedida na prática das relações de trabalho.</p>
<p>No <a href="/(http:/www.ilo.org/ipec/Informationresources/WCMS_233016/lang--pt/index.htm" target="_blank">Relatório Mundial sobre o Trabalho Infantil</a>, publicado pela OIT em 2015, há referência à direta ligação entre pobreza e trabalho infantil.</p>
<p>A precarização das condições de vida e dos vínculos de trabalho é determinante, portanto, para impedir que a retórica de proteção se torne realidade. A Comissão para Erradicação do Trabalho Infantil da Justiça do Trabalho (Ceti) divulgou nota de repúdio à exploração do trabalho adolescente em condições análogas às de escravo, quando noticiado caso envolvendo a rede de Lojas Le Lis Blanc, conclamando a sociedade e os juízes do trabalho a mobilizarem-se “contra as diversas formas de precarização do trabalho, em especial a terceirização "desenfreada": “Se o trabalho infantil e o trabalho escravo podem, ainda, soar distantes e irreais para os juízes do trabalho, a terceirização, quarteirização e precarização das relações de emprego é o nosso dia a dia, nossa realidade a cada processo, a cada audiência. Nenhum magistrado trabalhista brasileiro poderá negar a presença, existência e os danos causados por estas formas de trabalho.(…) Os juízes do trabalho, mesmo que não queiram enxergar o trabalho infantil, não conseguem deixar de ver a terceirização e a precarização das relações de trabalho, especialmente em vias de votação do Projeto de Lei 4330/2004, que trata da terceirização – que, se aprovado, será a porta aberta para que casos como o noticiado virem muito mais do que notícia: virem rotina” (https://www.tst.jus.br, acesso em 21/5/2015). A nota de repúdio refere que um dos trabalhadores resgatados em condição de escravidão era um jovem de dezesseis anos, submetido a jornada de doze horas, morando em condições degradantes.</p>
<p>De acordo com o estudo feito pelo Dieese e pela CUT em 2011, em 2005, a cada dez acidentes de trabalho, oito envolveram trabalhadores terceirizados. Entre 2006 e 2008, morreram 239 trabalhadores por acidente de trabalho, dentre os quais 193, ou 80,7% eram trabalhadores terceirizados. A taxa de mortalidade média entre os trabalhadores diretos no mesmo período foi de 15,06 enquanto que entre trabalhadores terceirizados foi de 55, 53. No setor elétrico, o risco de um trabalhador terceirizado morrer por acidente de trabalho é “5,66 vezes maior que nos demais segmentos produtivos”. Em 2009 e 2010, “o número de trabalhadores acidentados com afastamento das empresas contratadas é quase o dobro dos trabalhadores diretos”. Em 2009, foram “4 mortes de trabalhadores diretos contra 63 de terceirizados; em 2010, 7 mortes de trabalhadores diretos, contra 75 de trabalhadores terceirizados”.</p>
<p>De acordo com o mesmo <a href="http://www.sinttel.org.br/downloads/dossie_terceirizacao_cut.pdf" target="_blank">estudo do Dieese</a>, a terceirização estimula fraudes em licitações, evasão fiscal, focos de corrupção, aumento das demandas trabalhistas e previdenciárias”.</p>
<p>No <a href="https://www.youtube.com/watch?v=RMltbYJ_SOI" target="_blank">documentário Favela Fábrica</a>, as entrevistas e visitas às residências dos trabalhadores revela a facilitação do trabalho infantil, através da contratação irregular e por produção. Os trabalhadores colocam os filhos pequenos a costurar, colar, cortar, para aumentar a renda da família, pois os valores pagos pelo trabalho são irrisórios.</p>
<p>Quando eu fazia doutorado na USP, participei de duas pesquisas de campo muito interessantes: uma reunião com os trabalhadores terceirizados na USP, em que descobrimos que o que mais os incomoda nessa prática é a invisibilidade, o fato de que não são reconhecidos como sujeitos que pertencem ao ambiente de trabalho. A segunda pesquisa foi feita em Brasília, através de entrevistas com terceirizados pela administração pública nos três poderes, e descobrimos, entre outras coisas, que a terceirização promove rebaixamento de salário e elimina o direito à fruição de férias. O vídeo que resultou dessa pesquisa, que chama Terceirizado: um trabalhador brasileiro, está <a href="https://www.youtube.com/watch?v=iu5Xhu82fzc" target="_blank">disponível no Youtube</a>.</p>
<p><strong>JB - A terceirização irrestrita foi permitida no País em 2017, quando Michel Temer sancionou a chamada "Reforma Trabalhista". Na sua opinião, quais são os pontos mais prejudiciais da nova lei?</strong></p>
<p>VS - Não há pontos positivos na Lei 13.429 e na Lei 13.467. Ambas foram propostas de modo ilegítimo, não foram discutidas com a sociedade, foram aprovadas por um Congresso com portas fechadas e promovem precarização das relações de trabalho, porque concretamente retiram direitos trabalhistas e têm um efeito simbólico devastador, que, inclusive, tem gerado algumas interpretações para além do texto legal, como a exigência (que não está na lei) de que as iniciais no processo do trabalho sejam líquidas.<br /> <br /><strong>JB - Que efeitos práticos a “Reforma Trabalhista” já produziu nesses nove meses em que está em vigor?</strong></p>
<p>VS - Os efeitos mais nefastos são o medo, amplamente repercutido pela mídia, de propor ação trabalhista, o que resultou em significativa redução do número de processos, sem que haja, evidentemente, maior cumprimento dos direitos, de forma espontânea, pelos empregadores. Ao contrário, esse medo tem invadido os ambientes de trabalho com discursos que tornam o trabalhador refém do emprego que possui, inclusive através da distorção do que a lei dispõe, disseminando coisas que sequer estão previstas, para que haja essa falsa compreensão de que não existe mais Direito do Trabalho.</p>
<p>E a chamada “Reforma” só produz retrocesso… Terceirizar, permitindo “atravessadores” na relação entre capital e trabalho, é uma prática do século XIX. Remunerar por produção, idem. Ao longo do tempo é que a sociedade rejeitou essas fórmulas precarizantes e conseguiu conquistar a remuneração fixa e o reconhecimento da fraude quando dois ou mais sujeitos se unem para explorar o trabalho alheio. É evidente que retirar direitos sociais não irá melhorar condições de trabalho ou de renda.</p>
<p>Há permissão para que gestante trabalhe em atividade insalubre; algumas verbas pagas em razão do trabalho passam a ser indenizatórias e, então, não integram férias, gratificação natalina, FGTS, nem versam contribuição previdenciária; há supressão do direito às horas in itinere, autorização para fracionamento de férias, para jornadas de 12 horas, para supressão dos intervalos para descanso e alimentação. Tudo isso sem falar das normas que facilitam a despedida, fragilizam a atuação sindical e das que impedem o acesso à justiça, como a previsão de que a cada ano o empregado pode “quitar” as dívidas do empregador, declarando que está tudo pago, e então ser impedido de reclamá-las na Justiça do Trabalho.</p>
<p>Imagine um trabalhador sem garantia contra a despedida, caso da absoluta maioria dos trabalhadores brasileiros, que está há um ano trabalhando para uma empresa e é chamado a dizer se está tudo corretamente pago até o momento ou não. Qual é a possibilidade concreta que esse trabalhador tem de dizer que suas horas extras não foram pagas, por exemplo, se com isso assumirá o risco (que certamente se concretizará) da despedida imediata?</p>
<p>A “Reforma” é um completo desmanche das garantias sociais trabalhistas e a única coisa que está promovendo é a redução das condições de trabalho, aumento de jornada, redução de remuneração, dificuldade de acesso à justiça, fragmentação e destruição da atividade sindical.</p>
<p><strong>JB - A longo prazo, quais serão as consequências socioeconômicas da “Reforma Trabalhista”?</strong></p>
<p>VS – Espero, sinceramente, que nenhuma, pois precisamos reverter esse quadro, senão com a revogação dessas duas leis, ao menos, com a criação de teses jurídicas e jurisprudências que anulem seus piores efeitos.</p>
<p><strong>JB - Na última edição do Curso de Capacitação de Lideranças da APCEF, em agosto, você palestrou sobre os direitos fundamentais no Brasil. Você acredita que esses direitos tenham sido preservados após o golpe de 2016?</strong></p>
<p>VS - Esses direitos vêm sendo negados desde que promulgamos a Constituição de 1988. A década de 1990 nos legou, além da triste Súmula 331 do TST, vários entendimentos e legislações destrutivas de direitos consagrados na Constituição. Um dos exemplos mais flagrantes é a lei que estabelece a possibilidade de compensação de jornada mediante “banco de horas” e que concretamente tornou o pagamento das horas extras uma quimera para boa parte dos trabalhadores.</p>
<p>Tivemos um recuo interessante no início desse século, com o reconhecimento da necessidade de prestar mais atenção à ordem constitucional, embora a realidade seja de que não conseguimos, ao longo desses 30 anos, assumir verdadeiro compromisso com o projeto ali inscrito. Ainda não “constitucionalizamos” a compreensão do Direito do Trabalho, o que se faz urgente em tempos de desmanche como o que estamos vivendo. Sabemos que o discurso dos direitos fundamentais está inscrito, também ele, na ordem liberal e, portanto, tem suas limitações, mas é uma ferramenta importante para a manutenção de um patamar civilizatório que impeça a barbárie.</p>
<p><strong>JB - Qual o papel das eleições 2018 no restauro da democracia brasileira?</strong></p>
<p>VS - Penso que, há muitos anos, talvez desde a abertura democrática, a eleição não assumia caráter tão importante em nosso País. Talvez em razão das opções que se apresentam, em alguma medida, assustadoras.</p>
<p>A democracia contemporânea é supervalorizada, porque, na prática, muitas vezes não passa de um disfarce para a dominação. Ainda assim, é uma fórmula de convivência social que se assenta na liberdade de expressão, nas possibilidades de acesso aos bens básicos necessários para uma vida minimamente digna e na possibilidade de escolha dos representantes, e de que essa escolha seja respeitada. Se isso é verdade, não é difícil constatar que o Brasil não vive mais em uma democracia. Mesmo antes do golpe de 2016, tivemos exemplos de práticas autoritárias, através da criminalização dos movimentos sociais, bem representada na chamada “lei antiterrorismo”.</p>
<p>A forma como o direito de greve vem sendo tratado pelo Estado é um bom exemplo da exceção em que vivemos, que sem dúvida aguçou-se com o golpe, pois a ruptura com as regras do jogo abriu uma verdadeira caixa de pandora, de onde saíram não apenas todos aqueles que odeiam direitos sociais, como um número expressivo de seres humanos com pensamentos conservadores que pensávamos estivessem superados, mas estavam apenas escondidos, e hoje são reforçados por discursos fascistas.</p>
<p>A realidade é que a escolha nas eleições de 2018 não será entre esquerda ou direita, mas entre o fascismo conservador e as possibilidades de recuperação de uma democracia perdida. As pessoas de carne e osso têm sofrido na pele o aguçamento das diferenças sociais, a perda de direitos. Por isso, acredito que haverá uma resposta nas urnas, embora a regra para a divulgação das ideias dos candidatos aliada à ideologia insistentemente reproduzida pela mídia faça uma verdadeira campanha baseada no medo. Uma campanha que nos divide entre “eles” - os bandidos, os corruptos - e “nós” - os bastiões de uma moralidade que não se traduz em nossa prática diária, mas que, de algum modo, nos assegura que de podemos iniciar uma guerra contra “eles”, armando-nos ou autorizando que o Estado elimine, sobretudo, pretos e pobres.</p>
<p>Nosso desafio até outubro é realizar um diálogo franco, aberto, democrático, com todos aqueles que conhecemos, buscando desvelar a realidade por trás de fórmulas fáceis e demonstrando a necessidade de assumirmos compromisso com nosso voto. Importante saber, por exemplo, o que pensam nossos candidatos acerca da terceirização, da reforma e da privatização.</p>
<p><em>*Entrevista publicada originalmente, em versão reduzida, no Jornal João de Barro de Setembro. Esta é a versão completa.</em></p>
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